Debater uma mobilidade urbana pró-pobre é imperativo

Crédito: Fast Company Brasil

Claudia Penteado 7 minutos de leitura

Valendo-me de pesquisas publicadas na Agência Brasil, saliento que: “o transporte público é o quarto maior problema das cidades para 12,4% da população de 319 municípios brasileiros, ficando atrás apenas da violência e segurança, da saúde e do desemprego”. De acordo com a pesquisa sobre o perfil da mobilidade urbana nas grandes cidades, divulgada no Seminário Nacional NTU 2019 & Transpúblico, e que teve como tema “A Qualidade no transporte público: uma demanda social”, 61,1% das pessoas consideram que o poder público é o responsável pela melhoria do transporte público. 

Outro estudo, este realizado pela Associação Nacional de Transportes Urbanos (NTU), em parceria com a Confederação Nacional do Transporte (CNT), mostrou que 59% dos entrevistados se deslocam todos os dias e destes, 53,3% estão se deslocando para ir ao trabalho, dos quais 45,2% fazem isso de ônibus. O estudo mostra ainda que 38% deixaram de utilizar o ônibus e 35,85% passaram a usar o carro. Entretanto, 62,6% estariam dispostos a voltar a se deslocar de ônibus caso os valores das tarifas fossem mais baixos e houvesse rapidez na viagem e flexibilidade em opções de volta. 

Quando questionados sobre a gratuidade das tarifas, 53,3% disseram não ter acesso à prioridade e entre aqueles que têm, 47,4% consideram a medida boa. Com relação à gratuidade, 50,9% sabem que o custo recai sobre os outros usuários, e 86,9% concordam com o benefício.  Esta pesquisa evidencia uma série de questões comumente visualizadas e experimentadas por quem diariamente utiliza o transporte público. 

O que eu quero mostrar são os impactos disso tanto na trajetória de universitários quanto de profissionais que empregam sua energia diariamente dentro dos transportes públicos — e que em tempos de pandemia se tornaram um vetor de transmissão do novo coronavirus. 

Já está provado que a forma como pessoas tão pretas de tão pobres, tão pobres de tão pretas se movem na cidade utilizando o transporte público de massa é revoltante.  Noticiários televisivos, no rádio e em conteúdos na internet dão conta da dimensão do problema, que talvez não seja visto como um problema e sim como um estado natural das coisas. Problematizar essa situação a partir da experiência do usuário, é de suma importância para propor melhorias, até porque uma das afirmativas nesse debate (principalmente em tempos de eleições em que o pobre é ouvido) é a de que quem cria e administra o sistema não o utiliza, ou seja, não matricula seus filhos em escolas públicas, não utiliza a saúde publica e não se locomove utilizando transporte público de massa. 

É nesse sentido que é de máxima urgência promover um debate sobre “mobilidade urbana e cidades inteligentes pró-pobre” a partir da experiência do usuário, obviamente amparado pela literatura a respeito do assunto, e tendo total conhecimento e fazendo bechmarking das melhores práticas de forma inteligente, comparando com o que está sendo feito nos países vizinhos. 

MOBILIDADE NO TEMPO PRESENTE 

O debate sobre as soluções e apontamentos do problema na mobilidade urbana a partir do conceito de Smart Cities ou Cidades Inteligentes no Brasil vem crescendo. O advento da tecnologia e a chegada de novos modelos de negócio que transformaram carros de passeio em meios de transporte privados (que permitem transportar até cinco pessoas em um mesmo carro de aplicativo), maquiou, de certa forma, a problemática das condições aviltantes a que pessoas tão pretas de tão pobres e tão pobres de tão pretas são submetidas diariamente dentro dos transportes urbanos, visto que vendeu-se a ideia de que o transporte por aplicativo poderia reduzir a lotação dentro dos coletivos urbanos. Estudos a respeito das corridas por aplicativos da Associação Nacional dos Transportes Públicos (ANTP) publicados em 2019 salientam que “o crescimento deste modo de transporte foi significativo nestes anos, a ponto da última Pesquisa de Origem e Destino feita pela Cia do Metropolitano de São Paulo em 2017 estimar que os veículos contratados por aplicativos fazem 362 mil viagens por dia, ao passo que os táxis convencionais fazem 113 mil viagens (Metro, 2018). Estes dados juntos (475 mil viagens) contrastam muito com os verificados na pesquisa anterior de 2007, quando só operavam taxis convencionais, com 90 mil viagens por dia.  Não há medida sobre o impacto desta mudança no grau de congestionamento da cidade, mas é possível afirmar que ele não é irrelevante”.

A contribuição desse texto está centrada no Design UX, que tem por definição a criação de produtos a partir da experiência do usuário. Quando se pensa em mobilidade e cidades inteligentes, a impressão que se tem é que a cidade existe para servir a uma classe média, e isso é tão real que basta fazer uma busca na ferramenta de pesquisa Google sobre o tema mobilidade urbana e cidade inteligentes para imediatamente encontrar imagens de pessoas brancas, classe média em ciclovias com bicicletas de aproximadamente R$ 5 mil, e com muita frequência o imaginário das cidades em galáxias altamente conectadas e limpas. Há um certo imaginário que horas flerta com anglo-saxão, horas busca uma europeização do Brasil, numa dialética vira-lata que esquece que a cidade se move para além de servir uma classe abastada. 

Há um certo imaginário que horas flerta com anglo-saxão, horas busca uma europeização do Brasil, numa dialética vira-lata que esquece que a cidade se move para além de servir uma classe abastada.

A cidade do México, por exemplo, apresenta uma razão de 10 km de linha de metrô para cada 1 milhão de habitantes, enquanto no Rio de Janeiro e em São Paulo essa relação é superior a 2 milhões de habitantes para cada 10 km. O grande problema dos investimentos em sistemas metroferroviários são os altos custos envolvidos nos projetos. Uma linha de metrô pode custar a partir de R$ 200 milhões/km e chegar, em alguns casos, a um custo próximo de R$ 500 milhões/km (linha 4 do metrô de São Paulo). No caso dos BRTs, a experiência mais recente brasileira, aqui no Rio de Janeiro, mostrou valores que variaram entre R$ 10 milhões e R$ 30 milhões o quilômetro, e é por isso que a maioria das grandes cidades estão optando por essa tecnologia. 

Observar e colher as experiências de quem enfrenta diariamente os transportes públicos estando neles por mais de duas horas é inteligente na hora de pensar políticas públicas de mobilidade urbana. É necessário e bom para a economia que a cidade seja inteligente para todes e não para uma minoria já privilegiada e cujos deslocamentos são de curta duração. Há um debate surgindo sobre o conceito de Affordance Ux Design, que é traduzido por alguns estudiosos como Israel Mesquita, como design do óbvio. 

Esse conceito, que não é novo, foi originalmente criado pelo psicólogo J. J. Gibson e posteriormente adaptado para o mundo do Design por Don Norman.  Em linhas gerais, Affordance é a relação entre um objeto e uma pessoa e diz respeito à efetividade das coisas. Um exemplo clássico é uma cadeira. Se usássemos as categorias do Affordance diríamos que a função da cadeira é acomodar a pessoa que nela se senta de forma tão segura que ela tenha certeza de que aquela cadeira foi feita sob medida para ela. É bem semelhante ao debate que Aristóteles propôs em ética a Nicômaco sobre a efetividade das coisas.  O tema central é que o pobre não faz parte do debate do affordance, porque ele não sente que as conduções cumprem a sua utilidade. O grande problema é que o debate da mobilidade urbana  pró-pobre,  se existe, parou na ideia de que ser móvel é levar as pessoas do ponto A ao ponto G no menor tempo, e as condições em que esta viagem é feita, acabam ficando fora do debate. 

É por isso que insisto em dizer que a mobilidade urbana brasileira se presta a pensar em como levar o pobre para a casa da madame e do patrão ou para o emprego, nos grandes centros das cidades. É muitíssimo interessante pensar que bem no Leblon, na zona sul do Rio de Janeiro, e o metro quadrado mais caro do Brasil, exista uma magazine vendendo roupas baratas e que não são de grife. É óbvio que ela está ali para capturar o dinheiro do pobre que trabalha para a classe média alta do Leblon, e que deixa ali mesmo todo o seu dinheiro, contribuindo para a condição de cidade dormitório do lugar em que vive.

Por fim, a mobilidade urbana precisa olhar a condição do pobre para entender que é digno garantir uma viagem segura, confortável e respeitosa, mesmo que ela seja de longa duração. Se não é possível reduzir o tempo da viagem, que ela seja ao menos prazerosa e aproveitável. Que a viagem produza tempo de leitura, de aquisição de informações por múltiplas plataformas digitais ou até mesmo de complementação das horas de sono.  

Debater uma mobilidade urbana pró-pobre é imperativo!


SOBRE A AUTORA

Claudia Penteado é editora chefe da Fast Company Brasil. saiba mais