Sobre feridas sem sutura e a bolha branca da discriminação

Crédito: Fast Company Brasil

Claudia Penteado 8 minutos de leitura

O ser humano desde sua existência busca sempre alguma forma de tornar sua vida mais próspera, e muitas vezes não lhe importa como atingirá seus objetivos. Eu, que vos escrevo, precisei sair do meu país em busca de uma vida mais tranquila. Uma tranquilidade modesta, no meu caso. Não havia água corrente na maioria das casas na cidade de Luanda, nem regularidade no fornecimento de energia elétrica. Literalmente tínhamos que caçar água e isso significava andar quilômetros com quatro  garrafões de cinco litros em cada mão, no meu caso. Todos os cinco tambores de 200 litros, as banheiras dos dois  banheiros que comportavam 30 litros cada, os 100 garrafões de cinco litros cada, umas 10 bacias de 20 litros cada uma, tudo precisava estar cheio para conseguirmos ter ao menos 7 dias tranquilos, ainda  com bastante racionamento. Cada um tinha direito a cinco litros de água por dia para o bem de todos. Vez ou outra uma vizinha desatenta vinha pedir água e a minha mãe sempre dava, e eu não gostava porque sempre pensava nos quilômetros que teria que andar e no peso que iria carregar na semana seguinte. Era duro. Quando saía água da torneira, normalmente acontecia às 3h ou 4h da manhã, aí minha mãe nos acordava para lavar a roupa porque às 8h ou 9h não haveria mais água. 

Um dia, revoltado com aquela vida dura por conta da falta de água, respondi que não tinha roupa suja minha e não deveria lavar a roupa dos outros. Minha mãe respondeu: “quando você tiver a sua casa, bote as suas regras, aqui todos fazem tudo por todos.” Fui entender a fala da minha mãe muitos anos depois e, claro, ela tinha razão. Buscar água nos rios, fazer pão em casa, preparar candeeiro a querosene, lavar e passar a roupa, colocar botões e fazer remendos nos buracos das minhas roupas, dar banho nos meus sobrinhos, levá-los na escola e ficar lá para que não fugissem, ir para escola, ser professor aos 16 anos, ir aos treinos de basquete, frequentar a missa das 6h da manhã, organizar os bancos da igreja e ensaiar no coral em Kimbundu faziam parte da minha rotina diária. A única coisa que eu não gostava era mesmo a falta de luz e de água. Não me conformava e por isso mesmo queria sair do país, não aguentava mais. E para piorar tudo, ainda vivíamos aquela época de muitos medos por causa da guerra e do terrível drama de ser incorporado ao serviço militar obrigatório, o que na época era igual a uma sentença de morte. Então, sair do país era a melhor solução para mim.

Vivendo em São Paulo desde abril de 1995, até o momento não precisei carregar baldes de água ou fazer candeeiros por irregularidade no fornecimento de energia. Hoje até tenho uma máquina de lavar roupas que só falta me dar bom dia e trocar uma ideia comigo. Tenho uma vida que vai além de tudo que eu imaginei. Eu só queria mesmo deixar de carregar aqueles baldes na cabeça, eu só queria mesmo deixar de caçar água, não aguentava mais. Então, a vida sem fazer nada disso está boa. Ah, também não preciso mais fazer pão, tem padaria aqui perto com muitos tipos de pão. Pão mesmo, só faço para lembrar e matar as saudades, quando apertam. Meus filhos são saudáveis e o mais velho até já estudou na universidade de Boston e não precisou caçar água no rio. Aqui perto até há um rio, mas está podre. A minha filha mais nova só pensa em pop it, mas agora consegui convencê-la a fazer aulas de dança, natação e capoeira. Quando lhe falei que eu precisava buscar água no rio, não entendeu nada. Perguntou: “por que você não abria a torneira?” Aqui também tem sal que já vem fino, não precisa pisar para colocar na salada.

Nesse país grande e com muitas cores, há muitas coisas parecidas com o lugar de onde eu vim. As comidas são iguais, mudando somente o jeito de preparo. A pele escura das pessoas daqui é igual a pele escura do lugar de onde eu vim. O tratamento dado a estas pessoas de pele escura aqui é muito cruel, nunca tinha conhecido tamanha crueldade. Lá na minha terra temos muitos problemas, mas não lembro de nenhum deles somente pelo fato da minha pele ser escura. Eu consegui me mudar porque estava cansado de carregar água na cabeça. Mas o meu amigo da pele escura que nasceu aqui, como e para onde ele poderia mudar? Não dá para mudar a sua pele escura por uma pele instituída, vista e dita como a pele clara, a pele dos anjos, a pele pura, a pele branca. Na nossa pele, seja escura, clara, amarela, indígena e tantas outras, ainda carregamos as nossas distintas religiões, os nossos Deuses, a nossa fé, a nossa orientação sexual e todas as outras formas de viver que a cada um cabe por direito escolher.  

Com o passar dos anos, morando aqui neste lugar de tantas cores, fui percebendo que estas cores foram sendo categorizadas. Quanto mais próximo da cor branca, mais privilégios e, consequentemente, quanto mais próximo da cor escura, menos respeito como cidadão, chegando mesmo à falta de respeito. Mas tudo só porque a pele é escura. Não querem nem saber do seu cérebro e tão pouco do seu coração. O mais estranho mesmo foi saber que a minha pele escura, apesar de sua escuridão, tem procedência estrangeira e isso contribui positivamente para um tratamento, digamos, um pouco mais VIP do que o dado aos meus irmãos escuros, no seu próprio país. Conclusão: sotaque e aparência estrangeiros  trazem uma certa suavidade no tratamento de exclusão por conta da pele escura. Simplesmente um ultraje.

Com o passar dos anos, morando aqui neste lugar de tantas cores, fui percebendo que estas cores foram sendo categorizadas.

Com mais tempo ainda, e agora após conversar muito com a minha esposa, cuja pele não é tão escura quanto a minha, descobri que por isso mesmo ela também tem lá os privilégios simplesmente por esta condição de uma pele não tão escura. Mas, será que o problema mesmo é só a escuridão da pele? Que coisa estranha. Superficial e medíocre este método de exclusão. Esperava algo mais complexo e inteligente como o trabalho de Darwin lá em Galápagos, ou mesmo de todos os livros do nosso emérito Professor Kabenguele Munanga. 

Na condição de professor e educador, sou um observador nato e amante da arte de ensinar para compreender o mundo e os seus habitantes. Assim, por conta própria e das experiências que fui vivendo, percebi que a maioria das pessoas brancas no Brasil são classe média. Moram, estudam e frequentam lugares em que a maioria dos negros que são da classe pobre não tem como frequentar. A única possível relação de um negro com um branco na sua grande maioria é de serviçal de toda sorte. Seja como motorista, segurança, diarista, ou outras que não requerem muito estudo. Assim, a maioria dos brancos crescem dentro de uma bolha branca, onde normalmente não cabem negros. Somado a tudo isso, o próprio sistema se organizou de tal forma a manter o status de superioridade, que na verdade é uma camuflagem – consequência de um complexo de inferioridade que o brasileiro branco sofre no mundo, principalmente por parte de americanos e europeus. Para eles, esses brasileiros são todos farinha do mesmo saco, independentemente do quão claro ou escuro a sua pele é. 

Apesar da dor e dos traumas que são causados por qualquer tipo de discriminação, não sou a favor de atitudes ou respostas bélicas. Acredito que muitas vezes o ofensor que vive em uma bolha,  acaba sendo um repetidor de um comportamento discriminatório que a sociedade elitista e racista criou.

Ainda na minha condição de professor e de educador, fui treinado para ver pessoas e ajudá-las a buscarem pensamentos e atitudes que sirvam  também aos interesses da comunidade, da sociedade como um todo. Apesar da dor e dos traumas que são causados por qualquer tipo de discriminação, não sou a favor de atitudes ou respostas bélicas. Acredito que muitas vezes o ofensor que vive em uma bolha,  acaba sendo um repetidor de um comportamento discriminatório que a sociedade elitista e racista criou. Não é sempre que ele tem consciência da atitude cruel discriminatória. Então cabe um acolhimento deste indivíduo pela sociedade como um todo, a fim de reeducá-lo e ajudá-la a compreender a importância, a necessidade e os benefícios de uma sociedade plural como a nossa. Pode parecer uma fala inocente ou ingênua, mas não é não. Ainda que em escalas menores, isso já aconteceu. As empresas e a sociedade como um todo não o toleram mais, mesmo que seja apenas como uma forma de se firmarem como não discriminatórias. 

De todo modo, precisamos começar de algum lugar.  E é imperativo termos coragem para enfrentar os medos e as feridas ainda sem sutura – algumas que até já apodreceram, e outras que padeceram. 

O discurso precisa mudar. Hoje há o belicismo entre os diferentes em todos os aspectos. Pretos contra brancos e vice-versa, mulheres contra homens e vice-versa, gays contra héteros e vice-versa etc. Assim, simplesmente daremos continuidade ao que já conhecemos e sabemos que não trará resultado positivo algum.

Precisamos buscar compreender que isso é um problema da sociedade como um todo, e a todos diz respeito. Não é fácil, mas é o caminho que poderá nos levar a uma sociedade mais equânime e mais sustentável em suas relações.


SOBRE A AUTORA

Claudia Penteado é editora chefe da Fast Company Brasil. saiba mais