APP de delivery quer fazer da entrega um serviço mais justo

Crédito: Fast Company Brasil

Claudia Penteado 6 minutos de leitura

Em abril do ano passado, os amigos e ex-sócios Pedro Saulo Andrade, engenheiro de computação, e Rogério Nogueira, publicitário e programador, viram um episódio de um talk show da HBO que ajudou a consolidar uma ideia que se formava entre eles. Naquela noite, o “Greg News”, de Gregório Duvivier, escancarou alguns dos problemas que vivem os entregadores de aplicativos. Foi o gatilho. Eles decidiram criar algo que reunisse uma lógica de sistemas descentralizados, tema que não saía da cabeça de Saulo, e considerasse o impacto social da tecnologia sobre a vida das pessoas e das empresas, objeto de estudo de Rogério. O foco? O delivery, em um aplicativo que pudesse ser mais justo com toda a cadeia.

De lá até julho deste ano o plano foi desenhado, lapidado e testado até que, em agosto, foi lançado o AppJusto, uma plataforma de delivery que promete uma remuneração mais digna para o entregador, ganhos melhores para o restaurante e a possibilidade de preços mais baixos para o consumidor. “Não somos uma ONG. Estamos falando de business”, salienta Rogério.

Empreendedores, os dois lançaram algumas startups e têm experiência nesse mundo. Uma das mais conhecidas é a Allya, de benefícios corporativos. Programador desde 1994, Rogério já havia passado por diversas empresas, entre elas agências de publicidade e companhias fora do Brasil. 

Depois de vender sua participação na Allya, ele começou a discutir com Saulo, parceiro em vários de seus empreendimentos, o modelo atual do capitalismo e a gig economy, também chamada de free lance economy ou economia sob demanda, em que empresas contratam trabalhadores temporários, sem vínculo empregatício. “Na gig economy, existem duas frentes que não estão sendo usadas de ‘maneira bonita’: os motoristas de aplicativos e o delivery. São plataformas que tiram a autonomia das pessoas”, afirma Rogério. 

Isso quer dizer que esses trabalhadores não têm como estabelecer seus preços e ainda vivem sob controle das companhias, com avaliações e sanções que podem colocá-los fora do serviço por um tempo determinado, prejudicando o ganho do dia. O que pode ser aplicado de forma automática, pelo sistema adotado na tecnologia.

Mas há outras questões na complexa relação entre essas companhias e os free lancers. A remuneração é uma delas. Não à toa foram deflagradas manifestações e paralisações em várias partes do mundo, como o movimento Breque dos Apps, que no ano passado levou entregadores a pararem no país inteiro, pedindo melhores condições de trabalho.  

A equipe do APP Justo e um grupo de voluntários em São Paulo. Crédito da foto: @pangeanarrativas

MOVIMENTO DE RELAÇÕES

A proposta do AppJusto é criar um “movimento por relações mais justas e transparentes”. Para os entregadores, o aplicativo oferece autonomia para definição do preço das corridas e adoção de um sistema de frotas (por exemplo, frotas por bairro ou por períodos do dia ou por perfis, como uma só de mulheres); remuneração de R$ 10 até 5 km e mais R$ 2 por km adicional (durante o Breque dos Apps, entregadores disseram que esses valores estavam variando entre R$ 4,50 e R$ 7,50); recebimento do valor integral pago pela entrega (tirando a taxa da operação financeira); e nada de suspensões automáticas. Para os restaurantes, eles sinalizam com comissão de 5% (em outras plataformas, a taxa chega até a 30%); exibição igualitária do estabelecimento, com ordenamento por distância (em certos apps, o algoritmo expõe menos os negócios pequenos); possibilidade de oferecer valores de cardápio, já que os custos são mais baixos; e comunicação direta com os clientes (mediante permissão dos consumidores).

Já o público obtém preços mais em conta nos pedidos e tem entregas de encomendas até 25% mais baratas. O aplicativo ainda apela para o desejo dos clientes de construir um mundo melhor, afirmando que o delivery, por esse modelo, é socialmente responsável e mais sustentável. E ele ainda pode “fazer parte de um movimento de impacto social” ao ajudar os entregadores a ter qualidade de vida e os restaurantes pequenos a prosperar, incentivando também a economia local, do bairro.

“Somos uma empresa com olhar social. Queremos que mais dinheiro vá para as mãos dos entregadores e dos restaurantes. Existe uma frase ligada a unicórnios que é ‘Winners take all’, mas nós entendemos que o melhor do capitalismo é quando há alternativas”, argumenta Rogério.

CÓDIGO ABERTO E TRANSPARÊNCIA

Com esse posicionamento, como o empreendimento pode dar certo em um mercado com forte concorrência? Rogério aposta nos conceitos que estabeleceram para seu negócio. Um deles é a transparência. O processo de criação envolve código aberto, um valor caro para os fundadores. “Nosso open source mostra que não vamos nos corromper”, emenda.

A ideia de transparência inclui o modo como funciona o aplicativo, que foi discutido com as partes envolvidas. Rogério e Saulo se reuniram com grupos de entregadores para entender o que seria melhor para eles (uma das funcionalidades é que o app toca por proximidade, não lançando um pedido no ar para todo mundo ao mesmo tempo). 

Os sócios também conversaram com restaurantes para encontrar a forma mais equilibrada nas relações para que todos pudessem ter rendimentos satisfatórios e conseguissem vantagens que hoje não encontram no segmento. Assim, o objetivo geral acaba sendo o crescimento da plataforma. “O AppJusto é criativo e inovador no sentido de ser colaborativo. Ele foi construído coletivamente. Somos inspirados no espírito do cooperativismo”. 

Os outros pilares são autonomia (permitindo que os entregadores definam as condições de trabalho e os restaurantes criem suas estratégias comerciais), preço justo (a política de taxas não está focada no lucro; a aposta está na expansão da plataforma); eficiência e sustentabilidade financeira (operação enxuta, investimento em descentralização de processos e sem dinheiro aplicado em marketing).

“A GENTE VAI PRA ONDE QUEREM A GENTE”

A startup – que conta com mais quatro sócios (o desenvolvedor Daniel Lima, o advogado Eduardo Araújo, o engenheiro Fernando Fuzii e o designer Ítalo Monteiro) – teve sua primeira linha de código criada em junho do ano passado e seu primeiro investimento anjo veio em setembro de 2020 (R$ 350 mil). A ideia inicial era ter o aplicativo dando largada na periferia de São Paulo. Porém, como conseguiram o apoio do Coletivo de Pinheiros, entidade ligada ao bairro, os primeiros testes foram na região, em maio passado.

Hoje, o AppJusto conta com mais de 80 restaurantes ativos, com alguns estabelecimentos em outros municípios. Foram cadastrados 4,5 mil entregadores, mas 770 foram aprovados. Por enquanto, eles não podem expandir muito essa base para que o sistema continue sendo justo. Mas, como diz Rogério: “a gente vai para onde querem a gente”. 

Já há cadastros em capitais como Belo Horizonte e Porto Alegre. Na cidade de São Paulo, a malha está crescendo aos poucos, na base da propaganda boca a boca. E também na prospecção de restaurantes. Nesse caso, o lado humano é tão essencial quanto a tecnologia.

Outro ponto destacado por Rogério é que eles trabalham com open data. As informações coletadas podem ser utilizadas por diferentes organismos. O Detran, por exemplo, poderá trabalhar com os dados gerados pelo aplicativo. Ter esse espírito voltado para o bem coletivo faz parte dos questionamentos que os sócios fizeram lá atrás, antes de se aventurarem pelo mercado de delivery. “Queríamos criar algo adequado para a gig economy. E inovador. Propiciar diálogos é inovador”, salienta. 


SOBRE A AUTORA

Claudia Penteado é editora chefe da Fast Company Brasil. saiba mais