Nossa saúde mental piorou e as empresas devem prestar atenção nisso

Crédito: Fast Company Brasil

Claudia Penteado 14 minutos de leitura

A pandemia aumentou os casos de depressão e ansiedade no mundo. Já se calculava que isso iria ocorrer em virtude das profundas mudanças que a Covid-19 impôs às populações. Sem falar da doença em si, sabia-se que o longo período de isolamento, o stress do novo cotidiano ou a incerteza do futuro e mesmo o medo de sair e continuar o tratamento de males já identificados iriam contribuir para o agravamento dos quadros existentes, servir de gatilho para crises ou até provocar novos casos.

Divulgado recentemente pela prestigiada publicação científica The Lancet, um estudo feito pelo Queensland Centre for Mental Health Research, na Austrália, comprovou que a incidência de depressão sobre a população cresceu 28% em virtude da pandemia. Em relação aos transtornos de ansiedade, a alta foi de 26%. Os dados consideram diagnósticos surgidos em 2020.

A pesquisa indicou ainda que as mulheres e os grupos mais jovens foram mais afetados. Além disso, os países mais atingidos pela Covid-19 foram os que tiveram mais casos das doenças.

Segundo os autores do estudo, a pandemia estabeleceu uma urgência ainda maior de fortalecimento dos sistemas de atenção à saúde mental na maioria dos países. Isso porque a depressão e a ansiedade já estavam, antes da Covid-19, entre as principais doenças que afetavam as populações e, mesmo assim, não eram destinados recursos suficientes para mitigar esses problemas.

Para os pesquisadores, o impacto da pandemia na prevalência desses males mostrou que “não tomar nenhuma medida para lidar com o aumento dos transtornos depressivo e de ansiedade não deveria ser uma opção”.

No Brasil também é possível saber quanto a pandemia afetou nossa saúde mental. E quanto ela tem rondado as empresas, embora frequentemente o assunto não seja tratado com a seriedade que merece. É o que revela o Mente em Foco, um movimento que surgiu neste ano, em abril, e que convida companhias e organizações a reconhecer a importância desse tema, propondo o combate ao estigma e ao preconceito social que gravitam em torno do assunto.

Criada pela Rede Brasil do Pacto Global da ONU e pela InPress Porter Novelli, com endosso da Sociedade Brasileira de Psicologia, a iniciativa encomendou uma pesquisa para avaliar o estado da nossa saúde mental desde o início da pandemia. Feito pelo Instituto Brasileiro de Pesquisa e Análise de Dados (IBPAD), o estudo, também divulgado recentemente, demonstrou que esses transtornos se agravaram profundamente e, mais do que isso, revelou quão difícil é falar sobre eles nas empresas.

SEM SUPORTE NO TRABALHO

Foram ouvidas 1.009 pessoas de todos os estados, entre junho e julho, numa amostra que reflete a população do país. Um dos principais resultados aponta como o funcionário pode se sentir desamparado pela empresa: 62% dos entrevistados disseram que o lugar onde trabalham não ofereceu suporte relacionado à saúde mental durante a pandemia. Por outro lado, 57% revelaram não ter procurado ajuda.

Quase 30% das pessoas afirmaram que tiveram dificuldade em desempenhar alguma função do trabalho ou da atividade profissional por não estar se sentindo bem mentalmente. Outro dado escancara a profundidade do problema: 91% não estão fazendo nenhum acompanhamento de saúde mental atualmente.

A pesquisa investigou ainda que reações surgiram ou aumentaram desde o início da pandemia. Doze sintomas foram relacionados, de modo aleatório. Sentir-se nervoso, tenso ou preocupado lidera o ranking com 70% das menções, seguido por sentir ansiedade acentuada frequentemente (55%) e sentir stress acentuado (51%). Além disso, sentir-se cansado o tempo todo com facilidade e sentir-se triste com frequência empataram em 49% das citações. Entre as respostas, 47% indicaram perda de interesse pelas coisas. E 46%, dificuldade para realizar com satisfação as atividades diárias.

MAIS JOVENS E MULHERES

Na análise sociodemográfica, o estudo indicou que jovens até 34 anos possuem uma média de 6,6 sintomas, enquanto os acima de 34 chegam a 4,3 manifestações expostas, comprovando o que apontou a pesquisa australiana. Outro dado que coincidiu: os mais propensos a sentirem sinais de transtornos da mente são mulheres. Além disso, entre os mais vulneráveis estão pessoas não economicamente ativas e integrantes das classes sociais C, D e E.

Já em relação à identificação de casos neste período, 82% disseram não terem sido diagnosticados e 6% contaram terem sido diagnosticados com um transtorno que já tinha sido identificado anteriormente e 5% declararam terem recebido um novo diagnóstico de doença mental.

Entre os que receberam diagnósticos, 59% foram identificados com transtorno de ansiedade generalizada, 52% com depressão, 13% com fobia social ou transtorno de ansiedade social, 9% com transtorno obsessivo compulsivo, 4% com uma fobia específica, 2% com dependência química, e 7% preferiram não especificar.

Diretor-executivo da Rede Brasil do Pacto Global, Carlo Linkevieius Pereira ressaltou que os números demonstram como a pandemia afetou os brasileiros por esse aspecto. E deixam evidente que cuidar da saúde mental dos colaboradores é um assunto que tem de estar na agenda das lideranças empresariais do país, já que estamos diante de uma necessidade urgente. “É preciso tratar o tema de maneira adequada. É preciso ter planejamento”. Ainda mais agora que as empresas estão voltando a receber seus colaboradores nos escritórios, após mais de 18 meses de trabalho em casa.

Max Stabile (Divulgação)

Apesar dos alertas dos especialistas a respeito da aguardada piora no quadro, os resultados da pesquisa surpreenderam. “Não esperávamos dados tão significativos”, admitiu Max Stabile, diretor executivo do IBPAD. “Além de estarmos vivendo a maior crise sanitária da nossa época, estamos passando por uma crise na saúde mental da população. Precisamos ter empatia e cuidado com quem convive e trabalha com a gente”, destacou.

CULTURA CORPORATIVA TÓXICA

Para Stabile, há um desafio importante por parte das companhias em função da falta de manifestação dos funcionários a respeito dos problemas que enfrentam e também da falta de acompanhamento especializado (somente 16% dos colaboradores afirmaram que já fizeram ou fazem algum tratamento ou buscaram ajuda profissional). Existe um limite para se preservar a privacidade das pessoas. “A empresa não pode invadir a intimidade de ninguém”, disse.

Ele ponderou, porém, que é necessário levar em conta que alguns sintomas – como os inseridos na pesquisa – praticamente fazem parte do ethos corporativo, ainda que não sejam saudáveis. “Há uma cultura corporativa tóxica, que deixa o funcionário o tempo todo tenso e preocupado. E isso é naturalizado”.

Como os autores da pesquisa australiana pontuaram a respeito do sistema de saúde dos governos diante do crescimento das doenças da mente, vale fazer observação semelhante para o mundo corporativo: deixar o assunto em segundo ou terceiro plano não deveria ser uma opção. E não apenas pelo lado humano da questão. A OMS estima que a depressão e a ansiedade custam à economia US$ 1 trilhão ao ano em perda de produtividade. O movimento Mente em Foco, em seu site, ressalta que no Brasil os transtornos comportamentais e de saúde mental já são a terceira causa de afastamento de trabalhadores de seus postos.

O PAPEL DAS EMPRESAS

Ao relembrar as razões para o Mente em Foco ter surgido, Carlo Pereira reafirmou o papel do mundo corporativo no debate sobre os cuidados com a saúde mental. O Pacto Global da ONU, por conta da pandemia, organizou uma série de atividades para ajudar as populações. Numa discussão com a OMS, ficou patente a preocupação com a escalada das doenças da mente porque logo no início a Covid-19 já era vista como causadora de stress coletivo. Na Rede Brasil do Pacto Global, que existe desde 2003, havia o desejo de aproximar o setor corporativo desse tema. Foi quando foram provocados pela InPress e pelo Instituto Brasileiro de Psicologia para criarem algo que unisse esses pontos. Desse modo, o projeto foi concretizado. “Não tem nada parecido com o Mente em Foco na América Latina”, declarou.

Carlo Pereira (Divulgação)

Segundo Pereira, algumas companhias dão pinceladas no assunto ao oferecerem uma ou outra atividade, que podem ser desde a indicação de um aplicativo de mindfulness ou benefícios como pagar uma academia. Mas poucas contam com programas que atacam os estigmas relacionados às doenças ou criam compromissos para efetivamente cuidar da saúde mental. “Às vezes, há empresas com muitos benefícios, mas o gestor atua como um carrasco. Assim, vai por terra a intenção. No final do dia, o que importa é a forma como a liderança enxerga esse tema”.

O movimento encoraja e ajuda as empresas a estabelecer ações concretas e duradouras de suporte psicológico aos colaboradores. “Surgimos num momento crucial em que precisamos acabar com o estigma social e dar ainda mais visibilidade a esse tema. Acreditamos que criar um ambiente de trabalho saudável do ponto de vista emocional tem de ser prioridade e fazer parte da estratégia de negócios dentro das instituições”, esclareceu Pereira.

Já aderiram ao movimento cerca de 40 empresas de oito setores, com mais de 300 mil colaboradores sendo impactados. São signatárias corporações como Unilever, Siemens, Nestlé, Mapfre, J&J, Ambev e AES. Algumas já contam com diretorias focadas em bem-estar emocional ou têm “brigadas” orientadas para saúde mental.

COMPROMISSOS E AÇÕES

Os princípios do Mente em Foco estabelecem que as companhias signatárias se comprometem a ter um profissional de referência para aconselhamento e atendimento; oferecer orientação e manejo de crises; garantir a avaliação permanente dos colaboradores; manter gestores engajados, com capacitação para atuar em relação ao tema e orientação sobre as melhores condutas, sendo agentes de transformação; criar um programa antiestigma, promovendo debates abertos e intervenções em grupo com assuntos que busquem reduzir o estigma relacionado ao sofrimento psíquico, inserindo-o como pauta permanente na organização; e a promover ações de incentivo à saúde mental, como campanhas e iniciativas para incentivar práticas culturais, esportivas, de nutrição, bem-estar e educação, entre outras, a partir de demandas identificadas.

No primeiro momento, o movimento desenvolveu seus princípios e, em seguida, buscou a adesão de companhias. A iniciativa oferece material de apoio e fóruns, além de estimular a troca de experiências e o compartilhamento de boas práticas. O debate é fundamental para se analisar, por exemplo, como se tratam as questões de meta, que frequentemente levam os funcionários a trabalharem sob constante pressão. Ou como vai a saúde mental dos colaboradores que fazem parte de grupos marginalizados pela sociedade, como as populações LGBTQIA+ e os que vivem na periferia, que enfrentam outros fatores estressantes.

Numa segunda onda, o Mente em Foco encomendou a pesquisa para avaliar o quadro, trazendo mais informações sobre o tema. Um passo no futuro será medir o clima organizacional e monitorar os compromissos assumidos. A intenção é chegar a 2030 com mais de mil empresas fazendo parte da iniciativa e, com isso, impactar dez milhões de pessoas.

O objetivo de monitorar se deve a um comportamento visto no mundo quando o assunto é sustentabilidade. “A gente entende que o greenwashing voltou com muita força. Estão lançando compromissos como se fossem água, e não pode ser assim”, criticou Pereira.

Há outro assunto que vem à tona nesta retomada da rotina corporativa. De acordo com o diretor-executivo da Rede Brasil, a volta ao escritório pode ser um assunto complexo, mesmo se o formato proposto for híbrido. “Dentro da possibilidade, o retorno deveria ser consensual. Neste momento pode ter gente que ainda se sente insegura para regressar a um ambiente com outras pessoas. Na equipe, pode ter colaborador que não está pronto para voltar”.

TRANSFORMAÇÃO NA ORGANIZAÇÃO 

Professora do Instituto Saúde e Sociedade da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a psicóloga Laura Câmara Lima defende que as empresas teriam de se interessar mais por questões como essa. Especialista em saúde mental relacionada ao trabalho, ela elencou as principais transformações nas organizações que levaram a mudanças nas causas de afastamento dos empregados.

Nos anos 90, acidentes de modo geral estavam entre as primeiras razões. Havia também as famosas lesões por esforço repetitivo. Transtornos mentais como depressão, ansiedade, stress pós-traumático, burnout ou mesmo insônia, alcoolismo e fadiga crônica (que fazem parte do manual das doenças relacionadas ao trabalho do Ministério da Saúde) não estavam entre as três principais causas.

Laura Lima (Foto de arquivo pessoal)

A partir de então, começaram a se notar outras características do universo corporativo. O médico e psicanalista francês Christophe Dejours, autor de “A Loucura do Trabalho”, postulou que o adoecimento mental não é gerado pelas condições de trabalho – como a falta de cadeiras –, e sim pela organização do trabalho. São as questões ligadas à hierarquia, as avaliações feitas pelo empregador, as relações entre os funcionários, com os chefes e com a companhia que estão levando mais gente a ficar doente.

“Houve uma mudança na gestão do trabalho e isso levou a um choque com a individualidade. Um dos fatores é que ela passou a ser feita por pessoas que não conhecem o que é aquele trabalho. Elas fazem, por vezes, a gestão do ponto de vista da lucratividade, sem conhecer a fundo a atividade”, explicou Laura.

Ao cenário podem ser acrescentadas altas exigências de qualidade, a precarização do trabalho e reformas que suprimiram fatores de proteção do funcionário, provocando uma cultura do “cada um por si”. Nas empresas, isso gerou o aumento da solidão e a diminuição da solidariedade. Com tudo isso, hoje os transtornos mentais ocupam lugar de destaque nas causas de afastamento do trabalho. Em alguns setores, alertou Laura, o adoecimento mental já é a primeira razão, como acontece no setor bancário.

Na pandemia, a insegurança (“no começo, ninguém era capaz de prever o que aconteceria; nem os médicos”), o stress das alterações súbitas no cotidiano, o isolamento e a sensação de desamparo (“o humano é um ser social”) multiplicaram o problema de quem já tinha alguma doença e geraram transtornos em quem não tinha antes. “No trabalho, foi preciso reaprender tudo. E qualquer mudança na organização pode prejudicar a saúde mental, especialmente se as decisões são sempre de cima para baixo. É claro que a pandemia impôs uma situação de risco a todos, mas as mudanças geraram medo e uma série de desafios para cada um, exigindo mais do nosso lado psíquico e emocional”, observou.

A volta aos escritórios pode animar alguns empregados, que desejam retomar as trocas informais (perdidas por causa do home-office), e atemorizar outros. Dependendo do ambiente de trabalho, a pessoa pode recear retornar a um cotidiano violento, de mal-estar, de competitividade extrema, do qual estava afastada por só se relacionar de maneira online. Ou até pode ainda estar vivendo o luto pela perda de um familiar pela covid ou de um colega do trabalho.

SOLUÇÕES COLETIVAS

Na percepção de Laura, as companhias não demonstram ter muita preocupação com a saúde mental. O RH, por exemplo, frequentemente está mais dirigido para a gestão da empresa. Quando se fala em qualidade de vida do funcionário, o discurso se volta mais para a corporação. “As empresas podem oferecer curso de meditação, mas tem coisas para as quais não há meditação que chegue. Não adianta oferecer, se o gestor faz com que o funcionário trabalhe tanto que não tenha tempo para o curso”.

Um problema na questão é quando a companhia individualiza o tema. Isso quer dizer que não basta enviar o empregado para a terapia. Se a empresa olhar para a saúde mental desse modo, ela pode acabar demitindo o funcionário, até por desconhecimento, como se isso fosse um meio de levá-lo a procurar tratamento. Se a corporação individualiza o assunto, outro risco é fazer com que o colaborador que adoeceu se sinta culpado por isso. O que pode gerar silêncio a respeito de seu estado. E coisas guardadas, alerta Laura, podem virar sintomas.

“Quando falamos de algo estrutural, a solução tem de ser coletiva”, disse. Como isso pode ser construído? “Grupos de apoio e grupos de discussão dentro das empresas são formas de colocar as pessoas a propor medidas”, respondeu. É o que também aparece nos compromissos propostos pelo Mente em Foco. Para isso, Laura ressaltou que é preciso criar lugares de trocas, espaços de confiança e meios de garantir o sigilo para que os colaboradores possam falar mais. Se tiver algum especialista na área para mediar essas conversas, ainda melhor. “Os problemas podem ser pessoais, mas se todo mundo tem, então é um assunto para todos”, completa a professora da Unifesp.


SOBRE A AUTORA

Claudia Penteado é editora chefe da Fast Company Brasil. saiba mais