O que aprender com a transformação do The Washington Post

Crédito: Fast Company Brasil

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Nesse mundo de disrupturas contínuas e sobrepostas, sobrevive quem consegue evoluir e se adaptar ao espírito dos tempos. Mas, não bastam ajustes parciais ou cosméticos. Para enfrentar movimentos disruptivos, há de ser uma mudança estrutural. É assim que se ganha resiliência ou antifragilidade. Os jornais são um bom exemplo desse desafio – aqueles que ainda não se transformaram sofrem com lucros tendendo a zero ou driblando um fluxo de caixa negativo. 

“Nessas situações, o melhor a se fazer em qualquer empresa é converter os efeitos da disruptura em epicentros de transformações positivas no modelo de negócios”

O universo da internet mudou completamente os hábitos de leitura. O jornal físico, embora muito mais fácil de navegar pela sua variedade de textos que a versão digital, provoca sobrecarga cognitiva – um cansaço – que faz as pessoas preferirem as mensagens curtas dos feeds que brotam na tela do celular. O abandono progressivo do jornal colapsou sua estrutura financeira, pela queda significativa das assinaturas e pela consequente pulverização do mercado publicitário. Segundo a Newspaper Association of America, os jornais norte-americanos reportaram uma queda de 55% nas receitas no período de 2007 a 2013. Em agosto de 2013, o New York Times vendeu o The Boston Globe por US$ 70 milhões, tendo pago US$ 1 bilhão por ele em 1993.

A estratégia dos jornais, em geral, tem se concentrado em três frentes principais: criar uma versão digital do conteúdo e fazer uso das redes sociais e apps como canais de distribuição; reduzir custos; e aprimorar seus bancos de dados macroeconômicos e setoriais, para vender informação às empresas. Na redução de despesas, infelizmente perdem jornalistas de peso, desfalcando a alma do jornal que é a qualidade do conteúdo. Essa conduta não tem sido suficiente, porque baseia-se no movimento de adaptação conjuntural ao mundo como ele é, em vez de se reinventar para reconquistar relevância e valor econômico. 

Nessas situações, o melhor a se fazer em qualquer empresa é converter os efeitos da disruptura em epicentros de transformações positivas no modelo de negócios, com apoio de tecnologia. Exemplo notável dessa lógica de inovação estratégica é o que o norte-americano The Washington Post tem conseguido fazer, desde que Jeff Bezos fez uso de sua fortuna pessoal para comprar o jornal em 2013 e reverter a espiral de crise. Próximo à aquisição, o Post havia contabilizado a perda de quase 300 mil assinantes em dez anos e amargava prejuízo financeiro de US$ 54 milhões.

Bezos não assumiu nenhum cargo executivo e nem atua no dia a dia do jornal, mas no Conselho tem emprestado sua visão estratégica, pautada pela ousadia e coragem, para mobilizar uma reviravolta que salvou o Post e reinventou o jornal. Tudo o que Bezos e o time de gestores do Post têm feito de lá para cá oferecem inúmeros aprendizados preciosos para qualquer empresa. 

Em primeiro lugar, expandiram o âmbito do jornalismo para além do cotidiano político de Washington DC, para cobrir os principais fatos em curso no mundo, com mais velocidade e intensidade. Fundado em 1877, o Post já foi uma das referências do jornalismo, como na revelação do caso Watergate que levou à renúncia do presidente Richard Nixon, em 1974. Bezos manteve Martin Baron como editor executivo, que permaneceu no Post até se aposentar no início deste ano. Baron ficou conhecido pela sua atuação no passado do Boston Globe (antes de embarcar no Post), ao denunciar a crise de padres pedófilos da arquidiocese católica de Boston, documentado no filme Spotlight – vencedor dos Oscars de Melhor Filme e Melhor Roteiro Original em 2016. 

Em segundo lugar, a expansão do escopo do Post para aumentar o tamanho do mercado leitor potencial pressupunha o desenvolvimento de um portfólio de 7 novas tecnologias:

  1. Arquitetura do sistema e novo design (look and feel) do jornal digital, para uma experiência de leitura muito mais prazerosa e instigante do que no jornal físico. Parte expressiva do investimento em tecnologia, contratação de engenheiros de sistemas e designers visava refazer o sistema para proporcionar uma experiência de navegação que permitisse ao leitor chegar rapidamente às matérias que mais lhe interessam, com diversidade de conteúdo multimídia e muito foco na experiência.
  2. Algoritmos de curadoria de conteúdo para acompanhar os hábitos de leitura e oferecer títulos mais coerentes com os interesses dos leitores. Esta estratégia viria a ser fundamental para o Post otimizar o retorno do investimento na distribuição de conteúdos gratuitos em diversas plataformas abertas (apps de notícias, como Apple News, por exemplo) e redes sociais, que permitem a degustação de artigos gratuitamente e, após algumas leituras, a compra de uma assinatura digital para continuar usufruindo do conteúdo. A conversão de visitantes ocasionais, canalizados para o website ou app, em assinantes pagos, é o objetivo estratégico mais desafiador para qualquer jornal (ou revista) nos dias de hoje.
  3. Sistema de editoração de conteúdo. O Arc Publishing aumentou muito a velocidade de design do conteúdo em amplitude multimídia, e do processo de publicação de notícias. Por sugestão do Bezos, esse mesmo sistema foi licenciado para outros jornais, criando uma nova fonte de receitas para o Post capaz de gerar mais de US$ 100 milhões por ano.
  4. Sistema de simulação da apresentação mais eficaz dos conteúdos. O Bandito permite estruturar um mesmo artigo com até 5 manchetes, fotos e tratamentos da história diferentes, que são submetidos a um algoritmo avançado que ajuda a decidir qual das opções os leitores vão achar mais atrativa.
  5. Ilhas de produção ágil de vídeos na redação, para gravação e edição rápida de documentários de curta duração e cobertura ao vivo de debates e outros eventos – recursos chave para competir com a nova dinâmica de comunicação das mídias digitais.
  6. Sistema de gestão de indicadores de desempenho estratégicos, o Loxodo, que permite às lideranças do Post acompanharem como os leitores percebem a qualidade do jornalismo, a velocidade e assertividade dos alertas da plataforma mobile, dentre outros.
  7. O Websked proporcionou o comando centralizado da gestão de conteúdos na sala de redação, permitindo aos editores verem o que estão produzindo em vídeo, fotos e blogs. O sistema envia alertas de prazo para jornalistas encerrarem e publicarem suas histórias. Com o time orientado para uma criação mais intensa de conteúdo e com o instrumento certo, o Post logo passou a produzir 2 vezes mais artigos online com 700 pessoas, do que o New York Times com 1.300 no mesmo período.

Finalmente, o aporte de capital de Bezos permitiu ao Post voltar a investir nas pessoas que ocupam posições chave. Desde a sua entrada, o jornal tem reforçado o time de jornalistas para imprimir agilidade na cobertura e reflexão sobre os fatos mais relevantes. Em 6 anos, contrataram 200 novos jornalistas para repor a equipe desfalcada pela crise, e 35 novos cientistas de dados e engenheiros de sistemas. Em parceria com o Google, mudaram a engenharia do site e do app para aumentar a velocidade de carregamento dos conteúdos para milissegundos. 

Jeff Bezos comprou o Post da família Graham por US$ 250 milhões. Na época, o valuation de organizações semelhantes indicava que o Post não valia mais que US$ 60 milhões (3,5 a 4,5 vezes o EBITDA anual), menos de um quarto do valor pago por Jeff Bezos (17 vezes o EBITDA de 2012, estimado em US$ 15 milhões). Graham deu o preço, e Bezos concordou sem negociar. Dois anos após a aquisição, o Post superou o tráfego online do New York Times, com 67 milhões de visitantes mensais, um aumento de 59% em apenas 1 ano. No final do 3º ano, superaram a marca de 100 milhões de visitantes únicos e, 4 anos depois, ultrapassaram a marca de 1 milhão de assinantes digitais. Em fevereiro de 2018, o Washington Post foi eleito a 8a empresa mais inovadora do mundo na tradicional pesquisa da Fast Company norte-americana, em um ranking composto por líderes da nova economia como Apple, Netflix e a própria Amazon. Hoje, o Post é um jornal saudável e sustentável.

O Post deixou de ser uma empresa de capital aberto, com ações em bolsa, a partir da aquisição de Bezos. Esse fato também favoreceu a experimentação. Quando os jornais abriram capital nas décadas de 70, 80 e 90, o corte de custos para satisfazer os investidores foi paulatinamente reduzindo a capacidade jornalística dessas organizações, mesmo antes do impacto devastador da internet. Propriedade pulverizada também reduz o apetite da gestão por investimento em inovações necessárias, que podem levar tempo para retornar dividendos para os acionistas – tornando o corte de custos o caminho priorizado por tantos jornais.

Assumir o Post, uma das melhores testemunhas da história da democracia americana, e ajudá-lo a se transformar, é um prato cheio para o senso de legado de Bezos. 

Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião da Fast Company Brasil.


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